Do chão e da alma
Há no ar uma magia
desconcertante
e a luz tem o sabor
impregnado das amoras silvestres,
como se fora lua cheia
e os pirilampos ziguezagueassem
ao encontro do sonho
nos penhascos da via-láctea.
Sinto-me cheio da vontade
de ir na direcção do acaso
a colher marmequeres campestres
e papoilas rubras de desejo
ouvindo o coachar de rãs preguiçosas
ou o zumbido de abelhas ladinas
no silêncio de sombras vivas
à beira de caminhos feitos de passos imponderáveis.
Sento-me onde me sinto cansado
e retomo a marcha quando me chamam os pássaros
ou quando os latidos agudos dos cães vigilantes
demarcam o espaço entre o possível e o ímpossível.
Quando me deito é porque a noite me abraça
e envolto na sinfonia maniqueista dos ralos notívagos
dou de caras com a matemática da vida
e enceto a aprendizagem duma tabuada informal.
Somo parcelas imprevisíveis de vontade,
subtraio arremedos de decisão,
multiplico por ansiedade a demência do tempo gasto
e divido em partes iguais o que não é divisível.
E o que sobra, se acaso sobra,
não é resto nem quinhão,
é um conjunto de nada e vazio
que preenche tudo o que sou
até transbordar pelos poros cavados
na rudeza da pele gretada
como sulcos de arado no campo em pousio
onde não crescem nem cardos nem girassois,
nem hortênsias ou morangos,
mas germina libertinamente
a erva alta que ao longe parece seara
e ondeia como seara
e cresce, e vive, e amadurece como seara
que não é, mas parece ser.
Inspiro fundo a bsorver os odores todos
que enchem o espaço, do local ao infinito,
até ficar zonzo da plenitude das fragâncias.
E adormeço sem a noção do sono ou do sonho
esbugalhando o olhar para me perder no horizonte
e mergulhar na vida viva que se alimenta
do sol e do mar, da noite e do dia,
e de mim!
É então que caminhando acordo de estar acordado
e busco no espaço em redor
a origem dum arrulhar inconfundível...
No cimo dum ramo seco que foi pinheiro,
ou azinheira, ou sobreiro, ou o que tiver sido,
uma rola breve cumprimenta-me de passagem
dizendo-me na sua linguagem de ave que eu reconheço:
- Cucurru... Cucurru... Curru...
É nesse momento que os olhos ficam marejados
e, seguindo embora, os passos já não vão,
ficam ali, entre o caminho e o destino,
a saborear o momento único e a viver o encontro
de mim com o que resta de mim
enquanto a rola se eleva no ar
como se desfraldasse o lenço branco do adeus
e batendo as asas frágeis escrevesse a mensagem
que não consigo dizer por mim mesmo:
- Obrigado!
by Paulo César, em 30.Junho.2008, pelas 22h30