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No Chão d'Água...

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? (Álvaro de Campos)

No Chão d'Água...

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? (Álvaro de Campos)

24.09.06

H e l e n a



Nisto de contar histórias eu não sou nenhum ás, mas sempre quero contar esta, por sinal algo triste. Ela aí vai…

 

Era eu ainda rapazola e este bairro não existia. A estrada ali ao fundo, que liga a avenida à escola industrial, também era só um carreiro mal amanhado, e, deste lado, para poente, os prédios rareavam, sobejando o campo de figueirais viçosos que, por esta terra, eram uma riqueza. A fonte corria ali abaixo, na cova, todo o ano, até mesmo naqueles em que o sol tudo tisnava e a seca se fazia sentir avassaladora. Água bendita aquela! Que o digam os moços daquela altura, homens hoje, que, à hora dos recreios, saíam da escola como setas e vinham dessedentar as gargantas secas como palhas e refrescar as faces afogueadas. A balbúrdia era tal que muitas foram as ocasiões em que a bulha eclodiu só porque todos queriam passar à frente de todos numa fila que não era fila nem era nada. Hoje da fonte já só existe a memória, dos figueirais a recordação e dos rapazes da escola as fotografias, algo cómicas, de que guardo, no que me toca, um exemplar, qual relíquia, digna de figurar em museu ou ilustrar as memórias que talvez um dia venha a escrever.

 

Esse passado, que não é saudosismo bolorento, mas amor ao que foi e já não é vida como antes era, assim trazido ao presente, levou-o o progresso que começa por ser a meta do Homem, mas que, a continuar assim, eu vo-lo assevero, muitos males trará ao mundo.

 

Mas, vamos lá à nossa história…

 Eu era dos que andava na escola nesse tempo. Um tempo duro, feito de saber datas e factos tim-tim por tim-tim, de empinar as glória pátrias, que incluíam as lutas contra os infiéis serracenos, intramuros e além mar, a cruzada dos descobrimentos e a missionação, os “novos mundos ao mundo” e o 28 de Maio, o doutor António de Oliveira Salazar, presidente do conselho, e o “Angola é nossa”. A ladainha dos feitos, o padre nosso da glória, o nacionalismo velho e relho e o ódio, sempre instigado, ao castelhano derrotado em Aljubarrota e expulso em 1640. O lastro do nosso saber era não saber, enquanto se idolatravam os mártires todos; do Fernando de Fez, masoquista até mais não, aos que “por actos valorosos se vão da lei da morte libertando” em cada 10 de Junho da Raça. O que nós tínhamos que não saber “A bem da Nação” não é para aqui chamado, mas hoje sei que os miúdos que vão à escola são pelo menos mais as crianças que nós nunca fomos. Ainda bem; isso alegra-me! Também são outros os tempos, outras as vontades…

  

Por exemplo, naquele tempo, as escolas eram separadas e rapazes e raparigas eram seres estranhos uns aos outros como se fosse crime o tu cá tu lá das conversas sem maldade, das brincadeiras sem intenções secundárias, dos encontros tão casuais como ser o que cada um era. Que mal teria, meu Deus? Não! As meninas eram meninas, senhoras da casa, amantes do lar, mães e esposas desde o nascimento, recatadas em tudo e sempre a pensar no futuro.

Os rapazes eram os Homens, os braços de trabalho, as traves mestras da casa e da família, e os portugueses que se orgulhavam de o ser, porque assim o ensinava a história pelo exemplo secular e religiosamente transmitido dos mais remotos antepassados. (Só o não eram os que deixavam este rincão de terra em busca de melhor vida e outras coisas, também.) Coisas que aprendíamos, até mesmo nas capas dos livros onde as bandeiras nacionais nos acenavam mensagens de patriotismo. Patriotismo… Naquele tempo…

 

Na escola, uma das miúdas chamava-se Helena. Carinhosa e infantilmente tratavam-na por Lenita. Era bonitinha, sem ser uma estrela! Vestia pobremente, senão mesmo miseravelmente. Já nem me lembro, mas julgo que levava os livros num saco de lona, velho e desbotado, à falta de dinheiro para comprar uma pasta bonita, como tinham as filhas do engenheiro Saraiva, ou as netas do Major Oliveira, ou as sobrinhas do Visconde Segismundo, gente brasonada, mas dum sangue tão naturalmente vermelho como o de qualquer outro comum mortal. Isto é: o Visconde não o era por ordem natural da sucessão familiar, mas porque, novo rico abrasileirado, acudiu à desgraça do antigos viscondes de Castro e Penalva comprando as quintas – ricas e belas quintas! – e o palacete, bem como o título, claro! Diz-se até que o seu apelido próprio é Mendes da Silva, mas que, com a transacção dos teres e haveres dos antigos sangue azul, achou por bem escolher a nova e mui nobre graça de Segismundo. Mal achada graça, digo eu! Vaidades de burguês em tempo de vacas gordas. Mas, enfim, é lá com eles…

 

A Helena, como atrás se disse, era uma miúda bonita e, mesmo pobre e mal ataviada, dava nas vistas. Mas, diga-se, nunca foi grande aluna. Então em Português e na História era aquilo a que o professor chamava uma “nódoa”. Ela bem que se esforçava, mas quê. Aquilo eram lá coisas que se conseguissem aprender?!

Foi crescendo e, com o crescer, foi-se tornando ainda mais jeitosa e mais viva de modos. Os olhos faiscavam uma ternura e um vivacidade incomum e os trejeitos corporais provocavam os rapazes, aqueles que, mesmo sendo muito novos, viam na escola uma prisão e na vadiagem libertina forma de vida e crescimento.

Os tempos correram tão repentinos que parece que foi ontem o dia em que entrei naquela cerca pela mão de minha mãe para chorar de pavor quando me vi sentado naquela sala branca, de carteiras enfileiradas, e um quadro grande, enorme, à espera de cada um de nós nos dias que vieram depois. Foi no caminho para a escola que conheci a Helena, Lenita como nós lhe chamávamos.

 

Os anos correram e tornaram-nos mais e mais velhos. Não há que duvidar!

Fiz a quarta classe com boa classificação, mas, a Lenita, essa não. Continuou mais dois ou três anos e perdeu-se. Pobre Lenita! Tão moça, tão bonita, tão viva de encantos e vivacidade. Perdeu-se… Como nem eu sei, mas perdeu-se!


 

E tudo começou no dia em que Helena não apareceu às aulas. Ninguém deu por nada, ou melhor ninguém ligou ao facto. Um dia qualquer um falta, por doença, por indisposição, por uma razão que há-de ter justificação aceitável. Mas a falta repetiu-se dois, três, quatro dias seguidos. Ao quarto dia a professora mandou recado e no dia seguinte a mãe de Lenita apresentou-se na escola. Já lá estava Helena, de olhos encovados e vermelhos de lágrimas. Falaram no átrio, cá fora. O que disseram não se sabe, nem vem ao caso, mas à despedida, junto à porta da sala, a mãe de Lenita sempre disse à senhora professora:

 

- Obrigado, minha senhora! Muito obrigado! E já sabe, quando for preciso, e ela as merecer, não lhas poupe. Desde que não lhe parta nenhum osso…!!! Só se perdem as que caírem no chão!

 

E lá foram cada uma a seu destino. A professora, com à vontade, entrou na sala e o silêncio abateu-se sepulcral. A mãe de Helena, com os nervos em polvorosa, foi indo para casa cismando para si:


- Malvada! E anda uma pessoa a criar uma filha… Para quê?! Para receber destas! Malvada… Anda que logo te cato o pêlo!

 

Prometido e feito.

À noite, ao chegar a casa, Helena recebeu uma tareia de tal ordem que ficou de cama três dias e, ao quarto, já recomposta, mas ainda dorida e com o corpo cheio de nódoas negras, vestiu a melhor roupa, saiu à sucapa com o saco dos livros, como quem ia para a escola, mas o seu destino foi o mundo. Tinha então treze anos! Era bonita, num corpo de menina mulher. Os olhos azuis, grandes, pareciam abarcar todo o horizonte e a revolta, a ânsia de liberdade, levou-a à conquista da cidade grande.

 

Como o tempo passa!!! Parece que foi ontem e já lá vão quinze anos!

De vez em quando a Helena aparece por aí! Já não é bonita! Parece velha nos seus vinte e oito anos. Sorri muito, mas o seu sorriso não é terno como antes; é provocador e os homens percebem-no e seguem-na ávidos de tomá-la na cana onde ela se vende. O corpo, metido em saias curtas e calças justas, ganhou as formas de mulher adulta. O rosto mostra-o agora maquilhado de cores chamativas, com lábios ruidosamente vermelhos. Tudo nela virou personagem num palco que é a vida em que se consome.

 

A mãe, velha nos seus inacabados cinquenta anos, chora a filha perdida e lastima-se da sorte madrasta. Mas renasce da tristeza em que se consome ao vê-la, ao estar com ela, nas curtas visitas que Helena lhe faz, mesmo quando sabe que ela não virá dormir, à noite.

 

Há quem diga que nos dias em que faltou à escola foi com o Júlio Barreira, um vendedor de automóveis, raposa velha, que havia muito rondava a escola e falava com ela. Tinha um “Triumph” vermelho descapotável e seduziu-a com promessas. Dizem! Não sei; não posso assegurar que foi assim!

O certo é que a Helena era bonita, alegre, vivaz. Pobre embora, era um pedaço de mulher. Hoje vive algures em Lisboa, terra grande onde quase ninguém se conhece, trabalha, ao que consta, numa “boite” e vende o corpo, que já não é nem a sombra do que antes foi.

 

A Helena que conheci já não existe, mas recordá-la como a conheci faz-me sentir de novo rapazola de escola, correndo portão fora quando a sineta tocava e o dia de aulas havia terminado. No alarido da saída, encontrei-me muitas vezes lado a lado com a Lenita e um dia escrevi-lhe uma quadra que nunca lhe dei por vergonha. Dizia assim:

 

Quero ser teu namorado

Mas não sei se tu me queres

Vou continuar a teu lado

Digas tu o que disseres

 

Não continuei, nem fui seu namorado. Lenita perdeu-se! E eu perdi-a! Perdêmo-la todos!

 

  Conto  By Paulo César, em 27.Mai.1982, revisto e melhorado em 24.Set.2006

 

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